AMOR TRANSACIONAL: Por que chamamos de amor relações que são arranjos
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O amor não significa hoje o que já significou. Ao longo do tempo, ele deixou de ser apenas aliança social, destino ou dever, para se tornar experiência subjetiva, fonte de sentido, validação emocional e promessa de completude.
O problema é que a palavra permaneceu a mesma, enquanto as funções dela sempre mudaram.

Na confusão contemporânea, também chamamos de amor relações organizadas por troca, uso, segurança, regulação emocional ou status. O discurso moral tenta separar “amor verdadeiro” de interesse; o discurso econômico reduz tudo a negociação. Ambos empobrecem o fenômeno do amor.
O que interessa clinicamente não é defender o amor de uma suposta corrupção, mas diferenciar posições subjetivas. Nem toda relação é amor romântico e nem toda transação é adoecida. O sofrimento começa quando pactos funcionais são vividos como ideais, e quando o uso do outro precisa ser negado para que a relação se sustente.
Amor transacional: promessa afetiva a serviço de um arranjo
O amor transacional não promete, de fato, estabilidade, cuidado ou reconhecimento. O que ele promete é ilusão: a fantasia de que um arranjo funcional pode se transformar em amor ideal. É essa promessa (muitas vezes não dita, mas atuada) que sustenta o vínculo entre pessoas que estão em uma condição específica de pensar a vida (descrevo mais abaixo).
Não se trata de um pacto claro entre dois sujeitos completamente abertos afetivamente. Trata-se de um acordo assimétrico sustentado por fantasia compartilhada. A linguagem do amor entra para encobrir a natureza do arranjo e permitir que ele seja vivido como exceção, destino ou salvação.
Em Anora, isso aparece com nitidez. Ela não é enganada apenas pelo outro, mas pela imagem de amor que se forma: ser escolhida, elevada, retirada do lugar de objeto funcional para o de mulher única. O afeto existe mas no fundo a relação é um "brincar de".
A frustração surge quando a realidade rompe a promessa: não porque houve maldade consciente (existem casos em que há), mas porque a realidade foi mais forte que a estrutura do vínculo. Clinicamente, o amor transacional adoece quando a ilusão precisa se manter a qualquer custo, mesmo contra a experiência.
Os arranjos que sustentam a idéia vazia de amor
O amor transacional se organiza em torno de arranjos específicos, que não são aleatórios, mas respostas psíquicas e sociais a impasses concretos:
Status: o outro funciona como acesso simbólico a um lugar social desejado. Amar é ser visto.
Poder: o vínculo organiza hierarquia, controle e assimetria. A relação sustenta sensação de domínio ou exceção.
Sobrevivência: o laço responde a necessidades materiais, proteção ou estabilidade mínima. O amor aparece como justificativa posterior.
Imagem: estar com alguém serve para compor uma narrativa de valor, sucesso ou normalidade.
Provar valor: o outro é convocado como testemunha narcísica, ser escolhido confirma existência.
Provar sexualidade: o vínculo (ou vários vínculos) garante identidade sexual ou de potência, mais do que troca erótica real.
Nesses casos, o afeto pode existir, mas não organiza o vínculo. Ele é subordinado à função do arranjo prático.
As pessoas que se envolvem em um arranjo prático
O amor transacional tende a envolver pessoas que não passaram pela experiência de amor enquanto encontro espontâneo ou então não acham que isso é um algo real. Portanto, não possuem repertório psíquico para sustentá-lo. Não se trata de falha moral, mas de história emocional.
A lógica deixa de ser viver o vínculo e passa a ser comprar um lugar: um espaço, um título, uma identidade relacional. O amor vira meio, não experiência.
Algumas posições aparecem com mais frequência:
Funcionamentos normopáticos, adaptados à norma, mas empobrecidos de vida emocional.
Posições esquizoides, em que a proximidade é vivida como invasão e a função protege a própria integridade psíquica.
Perfis controladores, que precisam reduzir o outro a previsibilidade para não entrar em contato com a dependência, a perda, a vergonha, etc.
Pessoas excessivamente práticas, para quem emoções são abstrações, perigosas ou pouco confiáveis.
Em comum, há dificuldade de sustentar indeterminação, vulnerabilidade e alteridade elementos centrais do amor enquanto experiência viva.
A experiência de amor emocional
Não é um produto, então não conseguimos medir em termos de "narrativa ideal", certo ou errado... amar é apenas amar. Quando a experiencia de gostar, de se atrair, de amar não encontra obstáculos práticos, morais ou imagéticos, amar é simplesmente um bem estar, um querer bem. Sem pagamentos ou recebimentos.
O amor deixa de ser transacional quando o outro não é mais convocado para sustentar um arranjo, uma imagem ou uma prova de valor, e passa a ser encontrado como sujeito separado, imprevisível e não controlável. Isso exige repertório psíquico, tolerância à frustração e contato com a própria dependência.
Enquanto o amor funciona como promessa ilusória, ele organiza pactos frágeis, sustentados por fantasia e medo de desamparo. Quando essa promessa cai, o vínculo se rompe ou adoece. Não porque o amor falhou, mas porque ele nunca foi o eixo da relação.
Na clínica, o trabalho não é ensinar a amar, nem condenar transações. É possibilitar que o sujeito reconheça de onde ama, para que, se desejar, possa sair do lugar de compra, prova ou sobrevivência e se arriscar (pela primeira vez talvez) à experiência de encontro genuíno.
Referências Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Zahar, 2004.
Giddens, Anthony. A Transformação da Intimidade. UNESP, 1993.
Bourdieu, Pierre. A Dominação Masculina. Bertrand Brasil, 1999.
McDougall, Joyce. Teatros do Corpo. Martins Fontes, 1989.












Concordo muito com essa idéia de que existem pessoas que não tem traquejo emocional