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Projeto de vida e psicanálise: por que a vida não cabe num plano fixo

  • 16 de set.
  • 6 min de leitura

Fazer um projeto de vida costuma soar como algo sólido: traçar metas, escolher datas, desenhar um futuro passo a passo. Mas, quando olhamos mais de perto, planejar a vida inteira se parece mais com desenhar na areia. Por mais cuidadoso que seja o traço, em algum momento a maré sobe e redesenha tudo. A psicanálise nos convida a encarar essa verdade: controlar cada detalhe é uma ingenuidade, porque a existência tem seu próprio ritmo e acontecimentos imprevisíveis.


Onda azul gigante aproximando-se de um desenho de casa na areia, metáfora do projeto de vida segundo a psicanálise.

Em vez de buscar garantias, o trabalho analítico nos ajuda a escutar a vontade verdadeira — aquela que brota da nossa experiência mais íntima, e não apenas de expectativas externas. Ao longo de uma análise, descobrimos que o “projeto” não é um plano fechado, mas um movimento vivo, que se refaz a cada encontro com o inesperado. Assim, podemos atravessar as diferentes fases da vida com mais presença, transformando incertezas em parte do caminho, e não em inimigos a serem eliminados.


1. O que é um projeto de vida sob o olhar psicanalítico



alt="Caminho de pedras sendo construído passo a passo, simbolizando o projeto de vida na psicanálise como processo em aberto

Quando falamos em projeto de vida, quase sempre imaginamos um roteiro com começo, meio e fim: estudar, escolher uma carreira, casar, ter filhos, conquistar estabilidade. Essa sequência parece dar segurança, mas, na perspectiva psicanalítica, ela é apenas uma narrativa provisória que criamos para sustentar o sentido da existência. Freud já lembrava que o eu é “uma construção frágil sobre um solo em movimento”; ou seja, não existe um plano definitivo capaz de eliminar a incerteza que faz parte da vida.


A psicanálise propõe uma virada importante: em vez de encaixar-se em um plano pronto, a pessoa é convidada a descobrir qual história quer viver a partir de si mesma. Isso significa reconhecer desejos autênticos, mas também aceitar que eles mudam com o tempo. O que hoje parece essencial pode perder força amanhã, e isso não é fracasso — é vitalidade.


Desse modo, o projeto de vida não é um mapa fechado, e sim um processo de vir a ser. Cada sessão de análise abre um espaço para que o sujeito dê forma a esse movimento, escutando conflitos, afetos e lembranças que antes ficavam no silêncio. Em vez de buscar garantias, a psicanálise fortalece a capacidade de suportar a incerteza e de criar novos caminhos quando a vida se transforma.



2. Vontade verdadeira x desejos impostos



ter que escolher dentre vários elementos, representando a descoberta da vontade verdadeira no projeto de vida segundo a psicanálise

Muitas vezes, o que chamamos de “projeto de vida” começa como um conjunto de expectativas que não nasceram em nós. São desejos herdados da família, da cultura, de modelos de sucesso — casar até certa idade, ter determinado padrão de carreira, acumular bens. Esses roteiros podem dar a sensação de segurança, mas frequentemente nos afastam daquilo que realmente pulsa como vontade própria.


A psicanálise nos ajuda a fazer um deslocamento decisivo: sair do “eu devo” para o “eu quero de verdade”. Winnicott falava em um “verdadeiro self”, um núcleo vivo que se expressa quando conseguimos nos libertar de exigências externas sufocantes. Bion, por sua vez, lembrava que a experiência emocional não pode ser controlada de antemão; é preciso atravessá-la para que um sentido novo se revele.


Ao longo do processo analítico, fantasias, medos e repetições inconscientes vão sendo nomeados. Com isso, torna-se possível perceber quando estamos apenas obedecendo a mandatos invisíveis e quando estamos respondendo a um chamado genuíno. O projeto de vida, então, deixa de ser um roteiro rígido para se tornar uma criação em tempo real, guiada pela descoberta da vontade verdadeira. Essa liberdade não significa ausência de compromisso, e sim um compromisso mais profundo: viver a vida que é, de fato, nossa.


3. Períodos da vida e suas travessias



um pé que anda sob a areia ilustrando os ciclos e travessias do projeto de vida na psicanálise

A vida humana se desenrola em ciclos que pedem olhares diferentes. Há tempos de plantar e tempos de colher, fases de expansão e momentos de recolhimento. Cada passagem exige uma nova forma de viver — e a psicanálise oferece um espaço para que possamos reconhecer e atravessar essas transições com mais consciência.


Freud já observava que a juventude é marcada por projetos e escolhas, enquanto a maturidade nos convoca a revisar sonhos e confrontar limites. Winnicott descreveu a importância de atravessar a “depressão criativa”, um estado em que antigas certezas desmoronam para que algo mais autêntico possa nascer. Bion, por sua vez, falava do “não saber” como condição para o crescimento: aceitar o vazio que antecede a criação.

Esses momentos de virada costumam trazer sentimentos de perda ou desorientação.


O que parecia sólido se desfaz, e o “plano de vida” pode parecer sem sentido. É aí que o trabalho psicanalítico se mostra fundamental: transformar a crise em passagem, ajudar a dar nome ao que termina e acolher o que começa a despontar.


Em vez de exigir que cada etapa siga um cronograma rígido, a psicanálise nos convida a habitar cada período em sua singularidade, reconhecendo que o verdadeiro projeto de vida não é uma linha reta, mas um caminho que se recria a cada estação da existência.



4. O projeto que acontece no viver



As nossas descobertas acontecem enquanto vivemos metáfora do projeto de vida que se constrói vivendo, na visão da psicanálise

Por mais que desejemos segurança, a vida raramente se deixa conter em um plano fechado. Há encontros, perdas, acontecimentos inesperados que mudam a rota. Em vez de ver nisso apenas ameaça, a psicanálise propõe enxergar a imprevisibilidade como parte essencial do processo de criação de si.


Um projeto de vida autêntico não nasce de um roteiro pronto, mas de um movimento que se faz enquanto se vive. É como caminhar em um terreno que se constrói a cada passo: o caminho aparece quando o pé toca o chão. O psicanalista Donald Winnicott dizia que “a vida é aquilo que acontece quando estamos ocupados em viver” — e, justamente por isso, o verdadeiro projeto se revela no acontecer da experiência, não na sua previsão.


Na análise, esse movimento se expressa quando cada sessão permite revisitar lembranças, questionar padrões e dar novos sentidos ao que parecia definitivo. Em vez de lutar contra as ondas que apagam desenhos na areia, aprendemos a dialogar com elas, deixando que tragam outras formas e perspectivas.


Assim, o projeto de vida não é um objeto pronto que precisamos conquistar, mas uma obra em andamento, feita de escolhas, encontros e transformações que só se revelam na travessia. É nessa liberdade criativa que a psicanálise encontra sua força: ajudar cada pessoa a sustentar o desconhecido e a se surpreender com o que a própria vida quer dizer.


5. Psicanálise como espaço de criação


Na psicanálise, cada encontro funciona como um ateliê interior: um lugar em que palavras, silêncios e afetos se tornam material vivo para a criação de novas formas de existir. Ao contar e recontar sua história, a pessoa encontra espaços para ressignificar memórias, dissolver repetições e acolher desejos que antes pareciam impossíveis. É nesse trabalho artesanal que um projeto de vida, em vez de ser um desenho fixo, passa a ser uma obra aberta.


Freud já sugeria que falar é, de certo modo, dar forma ao que estava disperso. Winnicott acrescenta que o brincar — no adulto, tão presente na conversa analítica — é fonte de criação e descoberta. Bion, por sua vez, falava da importância de “suportar a frustração de não saber” para que algo verdadeiramente novo possa surgir. Todos esses autores apontam para um mesmo horizonte: a vida se renova quando encontramos um espaço de escuta que acolhe o inesperado.


Ao longo desse processo, a pessoa aprende a habitar o presente, em vez de ficar presa a metas rígidas ou a um passado que se repete. As mudanças externas — um novo trabalho, um relacionamento mais íntegro, um modo diferente de se relacionar consigo — surgem como consequência natural de um movimento interno. Assim, o projeto de vida não é uma tarefa a ser cumprida, mas uma criação contínua, sustentada pela coragem de se conhecer e pela liberdade de se reinventar.


Bibliografia
  • Freud, S. (1914/2010). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago.

  • Winnicott, D. W. (1971/1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

  • Winnicott, D. W. (1960/1990). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed.

  • Bion, W. R. (1962/1991). Aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago.

  • Bion, W. R. (1970/2006). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.

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Psicóloga Bruna Lima

CRP 06/130409

Bruna Lima Psicóloga Clínica

Psicblima@gmail.com

+55 11 99411-3832

Bruna Lima é psicóloga clínica com 5 estrelas no Google. Graduou-se em Psicologia pelo Centro Universitário FMU  e tem 10 anos de experiência em psicologia clínica.

Cadastrada E-psi, atende on-line a brasileiros expatriados há 10 anos.

Possui três especializações/certificações em psicanálise pelas instituições:

Bruna também é colunista no AllPopStuff e tem um canal no YouTube.

Com sua sólida formação, Bruna utiliza abordagens psicanalíticas personalizadas para ajudar cada paciente adulto.

Oferece atendimento online e presencial. Entre em contato para agendar.

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