O fenômeno Gaslighting
Uma análise científica sobre por que o gaslighting: Ele existe antes mesmo de ter esse nome
Antes de ser uma prática individual, o gaslighting é um fenômeno social firmado evolutivamente: ele nasce da disputa por quem tem o direito de definir o que é real dentro de um grupo. Povos humanos sempre dependeram de narrativas compartilhadas para sobreviver — e em qualquer espécie social complexa, quem controla o significado controla a coesão, o status e o lugar de pertencimento.
Estudos de psicologia evolucionista e teoria da dominação simbólica mostram que o cérebro humano não evoluiu para buscar “a verdade objetiva”, mas para buscar a versão dos fatos que mantém pertencimento e segurança. Isso explica porque, em contextos de desigualdade relacional, a vítima frequentemente duvida de si antes de duvidar do agressor: biologicamente, ser expulso do grupo era mais perigoso do que estar certo. (Baumeister, 2005; Boyd & Richerson, 2010).
Autores como Jared Diamond — ao discutir porque sociedades humanas se organizam e se preservam por meio de narrativas dominantes — explicam esse fenômeno como parte de uma lógica mais ampla: o poder não é apenas material, ele é narrativo. No livro Guns, Germs and Steel (“Armas, Germes e Aço”), Diamond mostra como a conservação de poder depende da capacidade de definir significado dentro do grupo, e não apenas de controlar recursos físicos.
Ou seja: evolutivamente, o gaslight não começou como “mentira”, mas como forma de estabilização de hierarquia. Só muito mais tarde, no campo clínico, ele se tornou reconhecido como forma de violência psicológica — mas o seu “DNA” original é social, não moral: quem lidera a história, lidera o grupo.
Antes de compreender por que o cérebro se adapta ao agressor, é importante revisar o que é gaslighting em sua definição clínica, para diferenciar abuso psicológico de conflito comum.
Por que o gaslighting existe do ponto de vista evolutivo (nível social / grupo)
Nos grupos humanos ancestrais, sobrevivência não dependia de “estar certo”, mas de estar incluído. A coesão grupal importava mais do que a precisão factual. Estudos de psicologia cultural e evolução social (Henrich, 2016; Richerson & Boyd, 2005) mostram que nossa espécie se organizou sempre em torno de narrativas coletivas, não de verdades individuais.
Por isso, ao longo da história, realidade foi um recurso político: quem regulava a narrativa determinava pertencimento, punição, honra, reputação e fronteiras simbólicas. Antes da força física, vinha a força semântica. Na prática: o gaslight é descendente direto da hierarquia narrativa.
Jared Diamond descreve isso de forma macro-histórica: sociedades só se mantêm quando conseguem controlar a interpretação da realidade, não apenas os eventos em si — porque grupos precisam de consenso simbólico para existirem como grupo. O gaslight é a “miniatura psicológica” dessa lógica: se no plano coletivo a narrativa preserva poder, no plano íntimo ela preserva controle do vínculo.
Quando a distorção se instala, os sinais internos começam a aparecer como dúvida crônica, culpa ou paralisia.
Por que o cérebro é vulnerável ao gaslighting (nível cognitivo / neurologia social)
Se a origem é social, a adesão é neurológica. O cérebro humano é biologicamente treinado para buscar validação externa, não autossuficiência perceptiva. Pesquisas em neurociência social (Lieberman, 2013; Dunbar, 2009) mostram que nossa sensação de segurança depende, no nível mais primitivo, de ser confirmado pelo outro — o que explica porque a narrativa alheia consegue, em certos contextos, substituir a nossa.
Do ponto de vista cognitivo, dois mecanismos tornam o gaslighting eficaz:
mecanismo ➝ função ➝ efeito no gaslighting
teoria da mente ➝ monitoramento do olhar do outro ➝ eu consulto “como me veem” antes de consultar “o que sinto”
dissonância cognitiva ➝ reduzir tensão interna ➝ é mais “barato” acreditar no outro do que enfrentar ruptura
Ou seja, o cérebro tende a preferir coerência relacional a coerência factual.
Quando há conflito entre “o que eu percebo” e “o que o outro valida”, o sistema nervoso social escolhe manter vínculo, não manter autonomia perceptiva.
Por isso o gaslighting não parece violência no início — ele parece ajuste adaptativo. O que está em jogo não é a memória, mas a pertença.
E isso fica visível quando observamos exemplos concretos do fenômeno, onde o cérebro troca verdade por sobrevivência.
O ponto de virada: quando o gaslight deixa de ser estratégia social e vira defesa identitária
O que era, originalmente, um mecanismo de cohesão do grupo, torna-se clinicamente destrutivo quando passa a funcionar como regulação da identidade.
Aqui, a questão deixa de ser “manter o grupo unido” e passa a ser “proteger quem eu posso ser dentro do vínculo”.
Em outras palavras:
no gaslighting clínico, o agressor não está apenas defendendo uma situação — ele está defendendo uma versão de si mesmo.
Quando enfrentar a realidade significaria ferir o senso de identidade (fragilmente estruturado), a narrativa passa a ser moldada para proteger o eu, não o vínculo. O outro vira tela de projeção para estabilizar uma autoimagem frágil.
Esse é o ponto em que o fenômeno deixa de ser evolutivo e se torna psíquico:
o poder narrativo não serve mais ao grupo — serve ao narcisismo do agressor.

A vítima não “não percebe”: ela é neurologicamente empurrada a concordar
Do lado da vítima, o mesmo mecanismo evolutivo que antes servia à sobrevivência do grupo agora facilita a captura psíquica: se rejeitar a narrativa do agressor significa arriscar o vínculo, o sistema nervoso opta por ceder percepção para manter pertencimento.
É por isso que, clinicamente, a vítima não “permite” o gaslight — é condicionada biologicamente a priorizar vínculo em vez de autonomia. A violência psicológica começa quando:
A narrativa deixa de ser compartilhada
A percepção individual deixa de ter legitimidade
A experiência subjetiva passa a depender do outro para existir
Nesse ponto, não há mais “conflito”: há perda de soberania interna. Se proteja.

A abordagem psicanalítica
Como a
psicoterapia ajuda
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Restitui o senso de realidade interna: diferenciar sua voz psíquica do olhar do outro.
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Mapeia repetições (ex.: escolher parceiros que invalidam).
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Repara a autoestima sem cair no “tudo ou nada”.
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Fortalece limites e o uso da palavra para nomear a violência.
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Integra corpo e mente: reconhecer sinais de alerta no corpo (tensão, congelamento) como parte da história emocional.
Por que o gaslighting persiste como fenômeno da espécie
Do ponto de vista evolucionista, o gaslighting persiste porque ele funciona como mecanismo de regulação do grupo. Ele resolve disputas narrativas rapidamente, sem confronto físico, e restabelece hierarquia através do consenso — ainda que esse consenso seja imposto.
É um “atalho social”: em vez de negociar realidade, alguém assume o lugar de “árbitro” da realidade. Esse arranjo estabiliza o grupo, mesmo que às custas de um indivíduo específico.
Na lógica ancestral: preservar coesão > preservar verdade.
Por isso o gaslighting continua existindo:
📌 porque ele é uma forma “eficiente” de manutenção de poder simbólico.
O que isso gera dentro do indivíduo
Quando internalizado no vínculo íntimo, o mesmo mecanismo que antes servia ao grupo começa a corroer o eixo de referência interna.
A pessoa não perde apenas argumentos — perde o direito de interpretar o próprio sentir. O que está em jogo não é a memória, é a autoridade interna sobre a experiência.
No nível psíquico, o gaslighting produz:
Consequência ➝ Efeito clínico
Deslegitimação da percepção ➝ Autodúvida crônica
Dependência interpretativa ➝ Submissão emocional
Erosão da autonomia psíquica ➝ Desnorteamento identitário
Quando isso se estabiliza, não há mais “disputa”:
há ocupação da mente — o agressor se torna referência epistemológica.
É nesse ponto que o gaslight deixa de ser apenas “dinâmica” e se torna lesão psíquica: o sujeito não apenas sofre, ele perde soberania sobre a própria narrativa.
O gaslighting não é um mal-entendido: é disputa (desonesta) de realidade
Por isso o gaslight não pode ser reduzido a “erro de comunicação” nem a “desentendimento de ponto de vista”. Ele é um fenômeno que ocorre no nível da autoridade da interpretação, não no nível da conversa.
Enquanto o conflito gira em torno do conteúdo, o gaslighting gira em torno de quem tem o direito de definir o que é real.
Do ponto de vista científico, ele é:
evolutivo em sua origem (controle narrativo mantém coesão e hierarquia)
cognitivo em sua eficácia (o cérebro prioriza pertencimento a precisão)
clínico em seu dano (a referência interna é deslocada para fora do eu)
Ou seja,
o gaslighting não é “dizer algo falso”,
é retirar do outro a legitimidade de saber o que viveu.
Essa é a chave que diferencia conflito de captura psíquica:
no gaslight, o sujeito não perde o debate — perde o direito de ser autor da própria experiência.
E aqui está o ponto crítico:
ele não é devastador porque distorce fatos,
mas porque quebra o alicerce interno de onde os fatos poderiam ser nomeados.
Gaslighting: da espécie → para o indivíduo
Quando olhamos o gaslighting apenas pela perspectiva psicológica, ele parece um comportamento “intencionalmente cruel”. Mas quando o observamos no plano evolutivo, entendemos por que ele acontece com tanta frequência: ele é uma herança do modo como humanos sempre disputaram significado dentro do grupo.
A diferença é que, hoje, ele não acontece mais para proteger a tribo —
acontece para proteger o ego.
No passado, ele preservava hierarquia;
agora, ele preserva identidade.
O dano surge quando esse mecanismo deixa de regular o grupo e passa a regular o outro — deslocando a autonomia psíquica para fora da própria experiência. A partir desse ponto, o sujeito não apenas cede a narrativa: ele perde o eixo interno a partir do qual poderia reconstruí-la.
Por isso, compreender o fenômeno gaslight antes da camada clínica é fundamental:
ele não começa no trauma — ele começa na estrutura social que antecede o trauma.
E por isso ele cola tão facilmente em vínculos desiguais.
FAQ
O gaslighting é algo “inventado” no século XX ou existe desde antes?
- O termo é recente, mas o fenômeno é muito anterior. Do ponto de vista evolutivo, ele sempre existiu como forma de regular hierarquia e consenso dentro do grupo. O que mudou não foi o mecanismo, e sim o fato de agora conseguirmos nomeá-lo.
Por que o cérebro humano aceita uma narrativa distorcida mesmo quando os fatos dizem o contrário?
- Porque biologicamente somos programados para priorizar pertencimento em vez de precisão. Pertencer ao grupo sempre foi mais importante para a sobrevivência do que “estar certo”. Por isso, quando o vínculo está em risco, o cérebro prefere ceder realidade.
Gaslighting é sempre intencional?
- No nível social/evolutivo, não necessariamente — ele aparece como um mecanismo automático de regulação de status. No nível clínico, porém, ele se torna intencional quando alguém precisa controlar a narrativa para proteger a própria identidade ou posição psicológica.
Por que algumas pessoas se tornam mais vulneráveis ao gaslighting do que outras?
- Porque a vulnerabilidade depende do peso que o indivíduo atribui à validação externa. Pessoas que desenvolveram maior dependência relacional (por história de apego, insegurança ou socialização voltada a agradar) cedem percepção mais rapidamente para manter o vínculo.
👩⚕️ Sobre a autora
Bruna Lima é psicóloga clínica (CRP 06/130409), formada pela FMU, com certificação pelo Instituto Sedes Sapientiae e Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Atua há mais de 10 anos com atendimento clínico, com foco em traumas relacionais, TEPT-C e dinâmicas de abuso emocional como o gaslighting.
Referências Bibliográficas
- Diamond, Jared. Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies. W.W. Norton, 1997.
Baumeister, R. The Cultural Animal. Oxford University Press, 2005.
Boyd, R., & Richerson, P. Not by Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution. University of Chicago Press, 2005.
Henrich, Joseph. The Secret of Our Success. Princeton University Press, 2016.
Lieberman, Matthew. Social: Why Our Brains Are Wired to Connect. Crown, 2013.
Dunbar, Robin. How Many Friends Does One Person Need? Faber & Faber, 2009.
Disclaimer
- Este conteúdo tem finalidade educativa e conceitual. Ele descreve o gaslight como fenômeno evolutivo e cognitivo, anterior à camada clínica, e não substitui avaliação psicológica individual. O fato de termos predisposição social à distorção narrativa não justifica sua prática — apenas explica sua origem. Quando o gaslight se torna ferramenta de controle na vida íntima, passa do campo adaptativo para o campo do dano psíquico.
- 18 de outubro de 2025 às 20:18:40
Created date:
- 16 de novembro de 2025 às 15:53:33
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